terça-feira, 14 de setembro de 2010

Crítica ao livro "O Caderno de David", de Daniel Caldeira - por Douglas Fersan



Conheci o Daniel há bastante tempo, nem sei dizer exatamente quanto. Lembro quando entrei naquela sala de aula pela primeira vez e, com meu jeito meio rabugento de ser, me apresentei àquela turma de sexta série. Lembro perfeitamente do olhar meio assustado do Daniel me analisando e talvez pensando: “taí um professor chato”.
Acredito que consegui mudar essa primeira impressão, pois não demorou muito para que vários alunos daquela classe deixassem de ser alunos para se tornar meus amigos, embora a diferença de idade fosse grande. Lembro de dezenas de alunos que adquiriram uma importância grande em minha vida, sendo até hoje meus amigos, mas não vou citar nenhum, pois o assunto é o Daniel Caldeira, e seria injusto se esquecesse de algum.
Logo percebi que o Daniel era alguém especial. Alguém que nasceu para brilhar, pois era dono de uma personalidade inquieta e crítica: não era daqueles adolescentes que aceitam o mundo ao seu redor sem contestá-lo, como também não era do tipo que sonhava mudar o mundo por pura rebeldia. Tinha os pés no chão, além de maturidade, honestidade e caráter muito além de seu tempo e espaço. É com muito orgulho que me atrevo (e é um atrevimento mesmo) a dizer que contribuí, ainda que de forma mínima para a transformação do pequeno Daniel em um grande Daniel: homem de bem, talentoso e de bom caráter.
É com mais orgulho ainda que recebi, um belo dia, em minha casa, a visita do Daniel, já homem feito, com seu notebook embaixo do braço, dizendo-se empolgado com uma nova idéia.
O domínio da palavra escrita – a ponto de emocionar seus professores – sempre foi um talento do Daniel, mas dessa vez ele tinha um projeto mais ousado, mais abusado até, arrisco dizer. Foi com empolgação que ele mostrou a mim e minha esposa Denise as primeiras páginas de um livro que estava começando a escrever, intitulado “O caderno de David”. Não era um livro qualquer, era um livro já destinado ao sucesso. E o sucesso foi comprovado em seu lançamento, no dia 09 de setembro de 2010, na livraria Nobel, no shopping Frei Caneca, em São Paulo.
Por que tive certeza que já era um livro destinado ao sucesso?
Em primeiro lugar porque era escrito pelo Daniel. Depois, porque tinha conteúdo, intenção e ação.
Não se trata de um livro destinado apenas ao público GLS, embora esse seja o tema central. Trata-se de um convite à reflexão sobre temas como a descoberta interior, a luta pelo reconhecimento da dignidade, os preconceitos, os pré-conceitos, a homofobia e a busca pela felicidade – nem sempre conquistada. É um importante trabalho no sentido de derrubar o estigma do homossexual como uma figura ávida por sexo o tempo todo, promíscua e esdrúxula. Quem ler o livro certamente não será mais o mesmo. A viseira do preconceito dará lugar à reavaliação de conceitos.
A leitura leve, porém consistente e prazerosa, cativa o leitor da primeira à última página e tem o poder de abrir a mente e aprimorar o espírito, embora, com certeza não seja essa a pretensão de Daniel, que tem entre suas tantas qualidades, a humildade.
Raramente indico livros em meus blogs ou matérias publicadas por aí afora, mas acredito que obras como “O Caderno de David” merecem todo o crédito, pois não se trata de simples entretenimento, é um livro que veio para abalar estruturas truculentas e transformar corações. Segue abaixo uma pequena resenha do livro e o link do blog de seu autor, o qual, embora já seja um Mestre, ainda faço questão de chamar de “aluno”, pois essa palavra, oriunda do latim, significa “filho adotivo” ou “aquele que fazemos crescer” (e não “sem luz”, como muitos dizem por aí).







O Caderno de David

Aos 23 anos David morre vítima de um câncer. Deixa aos cuidados da mãe um caderno, com o intuito de ajudar o companheiro a aceitar sua sexualidade. Nele, há pensamentos que discorrem assuntos como homossexualismo, família, religiosidade e amor ao próximo. Léo, ao perder o companheiro, sente-se frágil. É descoberto pela família e humilhado em praça pública. Sai da cidade deixando filhos e emprego. Um ano depois, um grupo de jornalistas descobre uma poesia escrita por ele, destinada a David. Imediatamente pede para que ele retorne, enfrentando a revolta da família. Léo é desafiado a escrever sua própria história. Mas para isso será preciso enfrentar seus próprios preconceitos.

“...tenho um coração colorido...
Que me perdoem os que vivem no mundo preto e branco...”
Daniel Caldeira


Link para o blog do autor: http://ocadernodedavid.blogspot.com/

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Intolerância religiosa nas escolas públicas - por Denise Carreira



Profissionais “despreparados” para lidar com religiões diferentes. Invasão de terreiros. Ofensas. Crianças isoladas por colegas e professores. Esses são alguns dos problemas encontrados por uma pesquisadora que visitou escolas de vários Estados do país e constatou que a intolerância religiosa em estabelecimentos de ensino é um problema grave e ainda invisível para as autoridades e a sociedade.

•Você acha que ainda há intolerância religiosa nas escolas? Opine
A pesquisadora Denise Carreira revela ter percebido certo “despreparo” dos profissionais de educação para lidar com o problema. Ela identificou que a principal fonte de discriminação são as religiões neopentecostais, que, segundo Denise, historicamente usam métodos de “demonização” para com algumas seitas.

Denise afirma ter observado em suas viagens casos de crianças, famílias e professores adeptos de religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, discriminados e hostilizados no seu cotidiano. Algumas crianças chegam a ser transferidas ou até mesmo abandonam a escola em razão da discriminação.

“Existem ocorrências de violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; demissão ou afastamento de profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou que abordaram conteúdos dessas religiões em classe; proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar; desigualdade no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas; omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de professores e diretores etc”, diz.

“São muitos casos e isso é, também, uma violência para com os direitos humanos, embora constitua uma agenda invisível na política educacional no Brasil”, afirma. As denúncias, sustenta Denise, mostram que as atitudes discriminatórias vêm aumentando em decorrência do crescimento de determinados grupos neopentecostais, principalmente nas periferias das cidades, e do poder que eles têm midiático.

O relatório, que será divulgado no dia 19, no Rio de Janeiro, e encaminhado a organismos internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas (ONU), traz recomendações para a resolução do problema. Uma das ferramentas para fazer frente ao problema, de acordo com relatora, é a implementação da lei federal 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em toda a educação básica.

Experiência própria
Jandira Santana Mawusi, estudante do curso de pedagogia na Uneb (Universidade Estadual da Bahia), e coordenadora de um curso pré-vestibular em uma escola municipal no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, conhece esse tipo de discriminação por experiência própria. “Desde que falei que sou de candomblé, os meus colegas de sala de aula mudaram comigo. Tenho dificuldade para me integrar aos grupos de estudo, e eles me olham como se fosse uma pessoa diferente, capaz de lhes fazer algum mal”, afirma.

Segundo ela, na escola onde leciona, diariamente, o diretor convida a todos para rezar o “Pai Nosso” antes das aulas. “Certo dia, ele me convidou a me juntar aos demais na oração. Então, perguntei se eu também poderia rezar para xangô. Ele respondeu que não porque não daria tempo”, conta.

Jandira diz que a mãe de duas crianças que estudaram nessa mesma escola recorreu ao Ministério Público porque suas filhas foram apontadas como “possuídas” por um professor, por serem de candomblé.

Não raro, diz ela, pessoas iniciadas temem revelar suas crenças. “Há pouco tempo, fazendo uma pesquisa no bairro, perguntei a uma senhora, dona de um terreiro, qual era a sua religião. Fiquei um tempo sem resposta. Indaguei a razão do seu silêncio e ela me disse que se devia à intolerância predominante.”

Atuando há mais de 10 anos na formação de profissionais para evitar intolerâncias racial e sexual e outras, membros do Ceafro (Educação e Profissionalização para a Igualdade Racial e de Gênero) mostraram-se chocados com a seriedade dos depoimentos colhidos por Denise.

"Não é novidade"
“Para nós, esse tema não é novidade. Mas, devo reconhecer, foi impactante ouvir os relatos de professores e mães de alunos que tiveram problemas. Doeu ouvir de alunos, por exemplo, que fizeram ‘santo’, e, tendo que usar roupas brancas, andaram com a cabeça raspada, foram taxados de ‘filho de diabo’, entre outras aberrações a que foram submetidos, ao ponto de não quererem mais voltar para a escola ou quererem abandonar o candomblé”, conta Ceres Santos, coordenadora executiva do Ceafro. “É muito grave”, diz.

Denise Carreira esteve na Bahia entre os dias 9 e11 de agosto. Ouviu o Ministério Público Estadual, as secretarias de Educação e Reparação, representantes dos terreiros de candomblé e outras lideranças religiosas. Segundo ela, as visitas ocorreram em Estados como Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.

O relatório será apresentado também ao Congresso Nacional, ao Conselho Nacional de Educação, Ministério Público Federal, autoridades educacionais, e instâncias internacionais de direitos humanos.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

É tudo culpa do Exu - por Douglas Fersan




É tudo culpa do Exu.
Comecei a ouvir essa frase dita em tom de brincadeira, pois nos fóruns de debate umbandistas sempre que algo era questionado e não se encontrava uma explicação plausível, saía-se com a máxima de que “tudo é culpa do Exu”. Tratava-se de uma brincadeira, mas percebi que as pessoas não tinham uma compreensão sobre o real papel de Exu no mundo espiritual. Nem convém aqui descrever novamente a importância de Exu na segurança de uma casa espiritualista – ou mesmo de uma igreja (vide o texto “O Exu na Igreja Evangélica”) – e nas esferas espirituais mais densas. Trata-se de questionar o umbandista acerca de sua compreensão sobre o Exu.
Não é de hoje que noto irmãos umbandistas referindo-se a Exu como entidade negativa, sem luz, possuidora de uma personalidade ambígua e duvidosa. Da mesma forma imputam à pombogira um estereotipo totalmente voltado à sexualidade, muitos afirmando até que foram prostitutas quando viveram na terra, como se isso fosse via de regra.
Ainda somos muito pequenos perante a imensidão complexa e ao mesmo tempo tão simples da espiritualidade. Não conseguimos compreender as coisas mais óbvias e saímos por repetindo impropérios sobre aquilo que deveríamos ter o mínimo de conhecimento.
Nenhum mistério é tão grande que possa resistir à fragilidade da luz. Buscar o entendimento da própria religião deveria ser um dever de cada umbandista, porém é mais fácil acreditar no senso comum, sem nada questionar, repetindo apenas coisas que mais parecem lendas do que realidades lógicas do mundo espiritual.
Quantas e quantas vezes o Exu leva a culpa pelas desgraças que acontecem na vida das pessoas? Estariam nossos compadres tão propensos ao mal? Não se trata de querer dar ao Exu características angelicais, as quais creio que os próprios refutariam, mas também não podemos cair naquela conversa infantil que sempre caminha no sentido de demonizar o Exu.
O universo e seu funcionamento é dual, mas Exu é coerente. Sendo um espírito na condição de nos auxiliar (e como auxiliam), caíram na contradição de auxiliar na vida e nos trabalhos umbandistas e, em seguida, tornarem-se obsessores que forçam as suas vítimas a procurar ajuda em outra casa umbandista? Exu não é burro, nem sequer ingênuo, mas infelizmente muita gente não sabe distinguir Exu de kiumba.
Mas como dizem, é tudo culpa do Exu. Os mesmos que o acusam de espírito obsessor lotam os terreiros nas chamadas giras de esquerda. Sim, pois é a ele que recorrem quando a água bate na bunda. E lá estão os Exus, a aconselhar, a orientar e, dentro do merecimento e da permissão da Lei Universal, a ajudar os mesmos que dali a alguns dias dirão que era tudo culpa do Exu.
Apesar dos modos rudes, os Exus são resignados, pois mesmo com tudo isso, continuam exercendo sua tarefa com dignidade e paciência. E os templos continuam lotados nas giras de Exu, porque eles fazem, eles ajudam sem muitas delongas. E se os terreiros estão cheios, também a culpa é do Exu.

Douglas Fersan – Setembro de 2010