sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Zélio de Moraes por Zélio de Moraes




Com 82 anos de idade, este homem é considerado por um pequeno grupo de umbandistas “o fundador da Umbanda”. Cabelos grisalhos, fisionomia serena e simples, Zélio de Moraes, através de seu guia espiritual, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, só sabe praticar o amor e a humildade.

“_Na minha família todos são da Marinha: almirantes, comandantes, um capitão-de-mar-e-guerra... Só eu que não sou nada” – comentava sorrindo Zélio de Moraes, aos amigos que o visitavam, nessa manhã ensolarada.

E a repórter antes mesmo de se apresentar retrucou:

“_Almirantes ilustres, capitães-de-mar-e-guerra há muitos; o médium do Caboclo das Sete Encruzilhadas, porém, é um só”.

Levantando-se, Zélio de Moraes, magrinho, de estatura mediana, cabelos grisalhos, fisionomia serena e de uma simplicidade sem igual – acolheu-me, como se fôssemos velhos conhecidos. Nesse ambiente cordial, sentindo-me completamente à vontade, possuída de um estranho bem-estar, esquecendo quase a minha função jornalística, iniciei uma palestra, que se prolongaria por várias horas, deixando-me uma impressão inesquecível.

Perguntei-lhe como ocorrera a eclosão de sua mediunidade e de que forma se manifestara, pela primeira vez, o Caboclo das Sete Encruzilhadas.

“_Eu estava paralítico, desenganado pelos médicos. Certo dia, para surpresa de minha família, sentei-me em minha cama e disse que no dia seguinte estaria curado. Isso foi a 14 de novembro de 1908. Eu tinha 18 anos. No dia seguinte amanheci bom. Meus pais eram católicos, mas diante dessa cura inexplicável, resolveram levar-me à Federação Espírita de Niterói, cujo presidente era o senhor José de Souza.

Foi ele mesmo quem me chamou para que ocupasse um lugar à mesa de trabalhos à sua direita. Senti-me deslocado, constrangido, em meio àqueles senhores. E causei logo um pequeno tumulto. Sem saber porque, em dado momento, eu disse: “falta uma flor nessa mesa, vou buscá-la”. E, apesar da advertência de que não poderia me afastar, levantei-me, fui ao jardim e voltei com uma flor que coloquei no centro da mesa.

Serenado o ambiente e iniciados os trabalhos, verifiquei que os espíritos que se apresentavam aos videntes como índios e pretos eram convidados a se afastar. Foi então que, impelido por uma força estranha, levantei-me outra vez e perguntei porque não se podiam manifestar esses espíritos que, embora de aspecto humilde, eram trabalhadores. Estabeleceu-se um debate e um dos videntes, tomando a palavra, indagou:

“_O irmão é um padre jesuíta. Por que fala dessa maneira e qual é o seu nome?”

Respondi sem querer:

“_Amanhã estarei em casa deste aparelho, simbolizando a igualdade e a humildade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem um nome, que seja este: sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas”.

Minha família ficou apavorada. No dia seguinte, verdadeira romaria formou-se na Rua Floriano Peixoto, onde eu morava, no número 30. Parentes, desconhecidos, os tios, que eram sacerdotes católicos, e quase todos os membros da Federação Espírita, naturalmente em busca de uma comprovação. O Caboclo das Sete Encruzilhadas manifestou-se, dando-nos a primeira sessão de Umbanda na forma em que, daí para frente, realizaria seus trabalhos.

Como primeira prova de sua presença, através do passe, curou um paralítico, entregando a conclusão da cura ao Preto-Velho, Pai Antônio, que nesse mesmo dia se apresentou.

Estava criada a primeira Tenda de Umbanda, com o nome de Nossa Senhora da Piedade, porque assim como a imagem de Maria ampara em seus braços o Filho, seria o amparo de todos que a ela recorressem.

O Caboclo determinou que as sessões seriam diárias, das 20 às 22 horas e o atendimento gratuito, obedecendo o lema “daí de graça o que de graça recebestes”. O uniforme totalmente branco e o sapato tênis.

Desse dia em diante, já ao amanhecer havia gente à porta, em busca de passes, cura e conselhos. Médiuns que não tinham a oportunidade de trabalhar espiritualmente por só receberem entidades que se apresentavam como caboclos e pretos-velhos passaram a cooperar nos trabalhos. Outros, considerados portadores de doenças mentais desconhecidas revelaram-se médiuns excepcionais, de incorporação e de transporte”.

Citando nomes e datas com precisão extraordiária, Zélio de Moraes relata o que foram os primeiros anos de sua atividade mediúnica.

Dez anos depois, o Caboclo da Sete Encruzilhadas anunciou a segunda fase da sua missão: a fundação de sete templos de Umbanda e, nas reuniões mediúnicas que se realizavam às quintas-feiras, foi destacando os médiuns que assumiriam a direção das novas tendas: a primeira com o nome de Nossa Senhora da Conceição e, sucessivamente, Nossa Senhora da Guia, São Pedro, Santa Bárbara, São Jorge, Oxalá e São Jerônimo.

“_ Na época – prossegue Zélio – imperava a feitiçaria, trabalhava-se muito para o mal, através de objetos materiais, aves e animais sacrificados, tudo a preços elevadíssimos. Para combater esses trabalhos de magia negativa, o Caboclo trouxe outra entidade, o Orixá Malé, que destruía esses malefícios e curava obsedados. Ainda hoje isso existe: há que trabalhe para fazer ou desmanchar feitiçarias só para ganhar dinheiro.

Mas eu digo: não há ninguém que possa contar que eu cobrei um tostão pelas curas que se realizavam em nossa casa; milhares de obsedados, encaminhados inclusive pelos médicos dos sanatórios de doentes mentais... E quando apresentavam ao Caboclo a relação desses enfermos, ele indicava os que poderiam ser curados espiritualmente; os outros dependiam de tratamento material”.

Perguntei então a Zélio a sua opinião sobre o sacrifício de animais que alguns médiuns fazem na intenção dos orixás. Zélio absteve-se de opinar, limitou-se a dizer:

“_Os meus guias nunca mandaram sacrificar animais, nem permitiram que se cobrasse um centavo pelos trabalhos efetuados. No Espiritismo não pode pensar em ganhar dinheiro, deve-se pensar em Deus e no preparo para a vida futura”.

O Caboclo das Sete Encruzilhadas não adotava atabaques nem palmas para marcar o ritmo dos cânticos e nem objetos de adorno, como capacetes, cocares, etc. Quanto ao número de guias a ser usado pelo médium, Zélio opinina:

“_A guia deve ser feita de acordo com os protetores que se manifestam. Para o preto-velho deve-se usar a guia de preto-velho; para o caboclo, a guia correspondente ao caboclo. É o bastante, não há necessidade de carregar cinco ou dez guias no pescoço...”

Considera o Exu um espírito trabalhador como todos os outros:

“_O trabalho com os exus requer muitos cuidados. É fácil ao mau médium dar manifestação como exu e ser, na realidade, um espírito atrasado, como acontece também na incorporação com criança. Considero o exu como um espírito que foi despertado das trevas e, progredindo na escala evolutiva, trabalha em benefício dos necessitados.

O Caboclo das Sete Encruzilhadas ensinava que o exu é, como na polícia, o soldado.

O chefe de polícia não prende o malfeitor; o delegado também não prende. Quem prende é o soldado que executa as ordens dos chefes. E o exu é um espírito que se prontifica a fazer o bem, porque cada passo que dá em benefício de alguém é mais uma luz que adquire. Atrair o espírito atrasado que estiver obsedando e afastá-lo é um dos seus trabalhos. E é assim que vai evoluindo. Torna-se, portanto, um auxiliar do orixá.

CINQUENTA ANOS DE ATIVIDADE MEDIÚNICA

Relembrando fatos passados em mais de meio século de atividade espiritualista, Zélio refere-se a centenas de tendas de Umbanda fundadas na Guanabara, Rio de Janeiro, estado de São Paulo, Minas, Espírito Santo, Rio Grande do Sul. A Federação de Umbanda do Brasil, hoje União Espiritista de Umbanda do Brasil, foi criada por determinação do Caboclo das Sete Encruzilhadas, em 26 de agosto de 1939.

Da Tenda Nossa Senhora da Piedade saíam constantemente médiuns de capacidade comprovada, com a missão de dirigir novos templos umbandistas; entre eles José Meireles, na época deputado federal; José Álvares Pessoa, que deixou uma lembrança indelével de sua extraordinária cultura espiritualista; Martinho Mendes Ferreira, presidente da atual Congregação Espírita Umbandista do Brasil; Carlos Monte de Almeida, um dos diretores de culto da T.U.L.E.F; João Severino Ramos, trabalhando ainda hoje ativamente, inclusive na Assessoria de Culto do Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda.

Outros, fugindo às rígidas determinações de humildade e caridade do Caboclo das Sete Encruzilhadas, desvirtuaram normas do culto. Mas a Umbanda, preconizada através da mediunidade de Zélio de Moraes, difundiu-se e hoje podemos encontrar suas características em tendas modestas e nos grandes templos, como o Caminheiros da Verdade a Tenda Mirim, nos quais a orientação de João Carneiro de Almeida e Benjamin Figueiredo mantém elevado nível de espiritualidade, no Primado de Umbanda, uma das mais perfeitas entidades associativas da nossa religião.

Durante mais de cinqüenta anos, o Caboclo da Sete Encruzilhadas dirigiu a Tenda Nossa Senhora da Piedade; após esse tempo, passou a direção à filha mais velha do médium, Zélia, aparelho do Caboclo Sete Flechas. Entretanto, Pai Antônio continua trabalhando, na cabana que mantém o seu nome, localizado num sítio maravilhoso, em Cachoeiras do Macacu. O Caboclo manifesta-se ainda em datas especiais, como foi o exemplo do 63º aniversário daquela tenda. Da gravação feita durante a celebração festiva, reproduzimos para os leitores a gravação final da mensagem do Caboclo das Sete Encruzilhadas.

“A Umbanda tem progredido e vai progredir muito ainda. É preciso haver sinceridade, amor de irmão para irmão, para que a vil moeda não venha a destruir o médium, que será mais tarde expulso, como Jesus expulsou os vendilhões do templo.

É preciso estar sempre de prevenção contra os obsessores, que podem atingir o médium. É preciso ter cuidado e haver moral, para que a Umbanda progrida e seja sempre uma Umbanda de humildade, amor e caridade. Essa é a nossa bandeira.

Meus irmãos, sede humildes, trazei amor no coração para que pela vossa mediunidade possa baixar um espírito superior; sempre afinados com a virtude que Jesus pregou na Terra, para que venha buscar socorro em vossas casas de caridade, todo o Brasil... Tenho uma coisa a vos pedir: se Jesus veio à Terra na humildade manjedoura, não foi por acaso, não. Foi porque o Pai assim o determinou.

Que o nascimento de Jesus, o espírito que viria traçar à humanidade o caminho de obter a paz, saúde e felicidade, a humildade em que ele baixou nesse planeta, a estrela que iluminou aquele estábulo, sirva para vós, iluminando vossos espíritos, retirando os escuros da maldade por pensamento, por ações; que Deus perdoe tudo que tiverdes feito ou as maldades que podeis haver pensado, para que a paz possa reinar em vossos corações e em vossos lares.

Eu, meus irmãos, como o menor espírito que baixou à Terra, mas amigo de todos, numa concentração perfeita dos espíritos, que me rodeiam nesse momento, peço que eles sintam a necessidade de cada um de vós e que, ao sairdes desse templo de caridade, encontreis os caminhos abertos, vossos enfermos curados e a saúde para sempre em vossa matéria. Com o meu voto de paz, saúde e felicidade, com humildade, amor e caridade, serei sempre o humilde Caboclo das Sete Encruzilhadas.

Reportagem feita por Lila Ribeiro, Lucy e Creuza para a revista “Gira de Umbanda”, nº 1, em 1972.
Texto enviado por email por Alexandre Cumino.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Espírita ou Umbandista - por Douglas Fersan



Não raras vezes ouvimos irmãos-de-fé que praticam e freqüentam a Umbanda referirem-se a si próprios como “espíritas”. Fato muito comum.

Mas afinal, são espíritas ou umbandistas?

Muitos responderão cheio de convicção: todo umbandista é espírita. Ora, se é assim, vamos sofismar um pouco: se todo umbandista é espírita, o inverso também vale, ou seja, todo espírita é umbandista, correto?

Obviamente que não. Aliás, se alguém tem alguma dúvida quanto a isso, basta perguntar a um espírita (e nem precisa ser daqueles mais ortodoxos) se ele é umbandista. Certamente a resposta será um belo e redondo “NÃO”.

Estaria errado esse espírita? A resposta mais uma vez é não. Ele está correto, afinal em sua doutrina não se faz oferendas, defumações, não existem pontos cantados ao som dos atabaques, incorporação dos falangeiros dos orixás, etc. Além disso, na própria bibliografia de Kardec, que forma a base doutrinária dos espíritas, está bastante claro que o termo “Espiritismo” refere-se à filosofia descrita ali, no Pentateuco kardequiano, e não às demais práticas espiritualistas.

Mas se o espírita não aceita se declarar como umbandista, por que o contrário deveria acontecer? Deveria, obviamente, mas não isso o que acontece. Muitos e muitos umbandistas se autodenominam espíritas – ou acreditam que realmente o são, não percebendo que existe um leque de diferenças abissais entre as duas religiões.

Para entender melhor essa questão é preciso recorrer à História, sempre sábia e pronta a nos dar respostas.

A corrente umbandista que tem em Zélio Fernandino de Moraes o seu fundador, diz que a Umbanda nasceu em um centro espírita, diante da recusa dos seguidores de Kardec em aceitar a manifestação de espíritos que na sua concepção eram atrasados e/ou ignorantes, como caboclos e pretos-velhos. Essa passagem já serve para nos mostrar que existe uma diferença colossal entre o Espiritismo e a Umbanda, já que o primeiro não aceita a manifestação de espíritos que formam o pilar da segunda.

Mas há quem argumente dizendo que para a espiritualidade não existem fronteiras. Mas para nós existem. Tanto existem que a espiritualidade se dividiu em dezenas de religiões, as mais diversas, para que cada uma atendesse às necessidades das pessoas em seu espaço e tempo. Se as diferenças não fossem necessárias para a compreensão e evolução moral de cada sociedade, a espiritualidade se encarregaria de criar uma religião única. Se as diferenças existem, é porque precisamos delas (alguns podem seguir uma religião mais liberal, pois possuem discernimento para isso; outros precisam de religiões com mais rédeas, pois são pessoas que precisam de mais regras em sua vida, e assim por diante, apenas para exemplificar).

Ainda recorrendo à História, vale lembrar que a Umbanda agrega diversos elementos africanos em sua liturgia – desde os espíritos dos pretos-velhos, até os falangeiros dos orixás e os atabaques – e não é segredo para ninguém que a construção de nossa sociedade se alicerçou em uma ideologia eurocêntrica, que classificava tudo que era de origem africana (leia-se negra) como inferior, atrasada e ruim. Assim, cultos que agregam elementos negros, como a Umbanda e o Candomblé foram vistos como coisa de gente ignorante e atrasada, além de sofrer repressões das mais diversas formas. Não raras vezes, terreiros de Umbanda e Candomblé eram atacados e destruídos. Até hoje existem aqueles que se referem a esse culto como “baixo espiritismo” – puro senso comum e manifestação de desconhecimento.

Durante os primeiros anos da república no Brasil, não eram raras as perseguições. Porém, durante a Era Vargas (1930 – 1945) surgiram vários terreiros de Umbanda que se denominavam espíritas, pois nessa época as elites mais esclarecidas eram simpáticas ao Espiritismo. Assim, denominando-se espíritas, os umbandistas conseguiam trabalhar em paz, sem ser incomodados pelas autoridades. Surgiram então, diversos terreiros que carregavam o status de “espírita” em seu nome, como “Centro Espírita Caboclo Pena Verde”, “Tenda Espírita Pai João de Angola” e assim por diante.

Ainda hoje muitos aceitam bem o Espiritismo, mas ainda têm reservas com a Umbanda, por não conhecê-la bem. Se alguém se declara espírita é bem aceito, mas se por acaso se declarar umbandista, corre o risco de sofrer algum tipo de preconceito. Por isso muitos preferem se dizer espíritas no lugar de se assumir como umbandistas de fato. Esses o fazem de forma consciente, como um mecanismo de defesa.

Porém existem aqueles que são umbandistas, mas se dizem espíritas e acham que estão corretos, pois acreditam tratar-se da mesma religião. A esses falta entendimento da própria religião que professam e, mais que isso, falta vestir a camisa da Umbanda, sentir orgulho dela.

Mesmo aos que se dizem espíritas como maneira de se defender falta vestir essa camisa. A legislação brasileira garante a liberdade de culto e o respeito aos diferentes credos. Qualquer manifestação de intolerância pode e deve ser denunciado, portanto já passou do momento de vestir a camisa da Umbanda, de se assumir umbandista e ter orgulho dos seus orixás, entidades e fé. Não devemos ter medo dos olhares ignorantes que nos taxam como macumbeiros, feiticeiros ou o que for. Perante eles devemos assumir a nossa condição e dar o bom exemplo, para que compreendam o que realmente é a Umbanda e saiam das trevas da ignorância. Não existem motivos para ficarmos acuados e envergonhados da nossa religião. Não somos a maioria da população (ainda bem, pois a Umbanda não é uma religião de massas, e sim de pessoas preparadas para ela), mas temos o direito de ser respeitados e esse direito começa a ser exercido quando perdemos a vergonha de ser o que realmente somos e passamos a ter orgulho da nossa condição.

Espírita é o seguidor de Kardec – ao qual devemos o maior respeito pela linda doutrina que seguem.
Mas nós somos umbandistas, acreditamos no Orixá, cultuamos o preto-velho, o caboclo, as crianças e recebemos a proteção de Exu. Temos rituais próprios, temos sacerdotes e liturgia própria. E nos orgulhamos disso.

Douglas Fersan – 05/01/2012
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