segunda-feira, 29 de abril de 2013

Um causo de Vovó Catarina - por Douglas Fersan



Era um homem culto, para quem não havia Deus senão a ciência. Sua arrogância era proporcional.

Igrejas? - ora, são templos de idiotas, costuma dizer.
Santos? - nada mais são que personagens da mitologia.

Benzedeiras, médiuns, orixás e guias espirituais, pior ainda.  Eram nada mais que mistificações ou crendices próprias dos ignorantes.  A estes não se contentava em menosprezar, mas fazia questão de achincalhar, dizendo que se tratava de religião de negros pobres e incultos.

A empregada da sua casa, uma negra de meia idade, ouvia esses absurdos e mantinha-se calada.  Entendia que o patrão queria provocá-la, pois sabia que ela era frequentadora de um templo de Umbanda.  Resignada, a serviçal ouvia aqueles impropérios e baixava a cabeça.  Sabia que não adiantaria argumentar.  Preferia deixar que Olorum e Xangô se encarregassem do assunto.  Quem era ela para julgar?
Mas eis que um dia o filho mais novo do patrão, um menino de apenas seis anos, caiu doente, vítima de uma febre ardente.

Os melhores médicos da cidade foram acionados e foram unânimes em dizer que desconheciam a origem do problema, mas que dificilmente uma criança resistiria àqueles sintomas cada vez mais avassaladores.

Desesperado, o pai preferiu levar o filho para casa.  Se tivesse que morrer, que fosse entre os seus, e não no leito frio de um hospital.
Todos, pais, avós, tios e irmãos estavam ao redor d
a cama rezando pela saúde do pequeno, ao que o pai reclamava, dizendo que se Deus realmente existisse, não permitiria que uma criança sofresse.  Foi nesse momento que a empregada entrou para servir um café aos presentes.  Ao olhar para o menino desacordado, não conseguiu se segurar: uma sensação de peso envergou suas costas, as pernas dobraram-se, ela deixou cair o bule de café no chão, enquanto todos a olhavam atônitos.

Com a voz diferenciada, carregada com um sotaque oriundo de tempos remotos, pediu licença e foi até o menino.  Quase sussurrando, cantou baixinho:

No pé do morro, na mata virgem
dizem que mora um velho lá
Ele é curador, ele é rezador
Ele é Xapanã, ele vai te curar

Mesmo o pai, sempre tão endurecido, calou-se diante daquela canto. Ainda sussurrando a velha fez uma série de orações quase inaudíveis e, por fim, passou a mão pelo rosto do menino, que imediatamente abriu os olhos.

Olhando para o patrão, disse humildemente:

_Vovó Catarina pede desculpa por ter vindo à casa do sinhô sem pedir licença, mas nêga véia não consegue ver um curumim doente da alma e ficar sem fazer nada.

O homem tentou balbuciar alguma coisa, mas não conseguiu, então a velha continuou:

_Nêga véia conhece seu lugar e sabe que os hómi da ciência faz sua parte, mas quando a doença é da alma é nóis que cura.

_Por que meu filho ficou doente? - perguntou a mãe com a voz embargada.

_Quando falta fé numa casa - respondeu a negra - a alma de todos enfraquece e os pequenos são os que mais sofrem. É dever do pai e da mãe ensinar que existe um Pai Maior e que a prece é o remédio da alma. Nesse casuá jogaram o remédio no ralo e ainda riam dele.  Com licença que nêga véia já falou demais e vai embora.

Nesse instante, o pomposo homem jogou-se aos pés da negra, pedindo perdão e prometendo mudar dali para a frente.  A velha apenas fez uma cruz em sua testa, dizendo que não era preciso pedir perdão a ela.

A cada dia que passou o menino melhorou, até ficar completamente curado. O respeito e a prece tornaram-se um hábito naquela casa e patrão, antes tão pedante, agora vestia-se de branco uma vez por semana e ia ao templo de Umbanda da empregada ajudar a cambonear os pretos velhos, aos quais nunca esquecia de saudar dizendo: Adorei as Almas.

Douglas Fersan

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sábado, 27 de abril de 2013

O que seus olhos preferem ver? - Por Douglas Fersan



  Conta a história que dois homens encontravam-se internados num mesmo quarto de hospital. Um deles estava próximo à janela e o outro distante dela.  Além de estar longe da janela o segundo homem estava muito debilitado e não podia andar, portanto não tinha o privilégio de observar o mundo exterior como o outro, e vivia reclamando disso.

  O companheiro que estava perto da janela, resignadamente dizia para ele ter calma, que um dia voltaria a andar e poderia ver a paisagem.

  _Que paisagem, que nada - dizia o ranzinza - aposto que aí não tem nada de interessante para se ver.

  _Engana-se - dizia o outro - estão construindo um belo jardim aqui ao lado.

  _É mesmo? - perguntou o ranzinza já meio sensibilizado.

  _Sim, estão plantando azaleias, margaridas.  O campo está ficando gramado.

  E assim dia após dia o enfermo próximo à janela ia descrevendo a evolução do jardim.  Contava que além das flores plantaram belas árvores, palmeiras, construíram um parquinho para as crianças.  E o outro paciente, antes mau humorado, agora sorria com a expectativa do jardim sendo construído.  O homem que nunca sorria agora tinha esperanças.

  Porém, numa manhã cinzenta, o homem da janela amanheceu coberto por um lençol, já sem vida.  Não demorou muito para que viessem buscar seu corpo.  Ficou a cama vazia e a janela aberta, soprando uma brisa suave, como um lamento perdido.

  No primeiro dia o homem ranzinza ficou em silêncio.  No segundo chorou, no terceiro sentiu falta do jardim que não via, mas que devia estar ainda mais bonito, já que, segundo seu falecido amigo, trabalhavam nele com tanto afinco.

  Não resistindo à curiosidade, desceu da cama com muita dificuldade.  Quase caiu.  Arrastou-se como um réptil, lenta e sofridamente para chegar até a janela.  Lá chegando ergueu o corpo com os braços esquálidos e olhou para fora.  Viu apenas um terreno baldio, tomado pelo mato e um muro velho, cheio de musgo e pichações.

  Não conteve o choro.  A bondade do seu amigo era tanta que ele construiu um jardim imaginário para os seus olhos distantes, que não podiam chegar à janela.
Resignadamente arrastou-se de volta para a cama e preferiu ver as coisas com os olhos do coração e não mais com os olhos amargos da vida.

Douglas Fersan
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domingo, 14 de abril de 2013

Os orixás não abandonaram a África, apenas se espalharam pelo mundo - por Douglas Fersan


Tornou-se comum ouvir daqueles que se esforçam para denegrir a imagem dos cultos afro-brasileiros o argumento de que a África passa por penúrias porque seu povo venera os orixás.  Esses religiosos fanáticos, fundamentalistas e intolerantes não medem esforços (e nem mentiras) para dar aos seu fiéis a impressão de que a África vive uma sub-cultura e que suas crenças estão associadas a poderes malignos e que, por consequência disso, o Deus igualmente intolerante que eles apregoam, castiga o continente com a fome, a guerra, a miséria.

Sobre as más intenções dessas pessoas nem é preciso falar, ela é explícita e qualquer pessoa com o mínimo de inteligência consegue perceber.  Cabe aqui falar sobre a falta de conhecimento político e histórico.  Israel cultua o mesmo Deus desses intolerantes e sofre com a Guerra.  A América Latina é um continente cristão em sua maioria e mesmo assim a fome grassa grande parte da sua população.  Não podemos confundir os erros humanos com a ação divina.  A história é resultado da ação (e das escolhas) dos homens, e não fruto da vingança divina.

Há outros, igualmente intolerantes, que dizem que boa parte dos africanos abandonou a crença nos orixás, e falam isso como se isso fosse sinal de evolução.  Mais uma vez pecam por não conhecer - ou ignorar propositalmente a história.  Esquecem de contar que missionários das mais diversas denominações invadiram o continente e fizeram uma verdadeira lavagem cerebral em seu povo, inserindo a ideia cristã-eurocêntrica de civilização, de salvação da alma e de céu e inferno.  Amedrontados, diversos povos africanos abandonaram suas crenças originais e aderiram a essas religiões.  Vale lembrar que ainda hoje isso acontece e não apenas na África.

Não contam também que os europeus dizimaram povos africanos, levando populações inteiras para servirem seus interesses na América como escravos.  Mas aí cometeram um erro grave na sua tarefa de acabar com as tradições africanas.  Ao invés da crença nos orixás desaparecer, ela se espalhou por outros continentes e vive até hoje.  As religiões de origem afro não estão entre as maiores do mundo, mas estão vivas e com raízes aprofundadas nos povos das regiões onde são praticadas.  As mazelas da África continuam, mas as do resto do mundo também.  Os orixás não abandonaram a África, apenas se espalharam pelo mundo.

Douglas Fersan

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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Uma breve história de Exu - por Douglas Fersan


Caminhava pela rua tranquilamente. Ao se aproximar de uma encruzilhada percebeu dois homens vindo sorrateiramente em sua direção. Certamente era um assalto ou coisa parecida, ninguém se aproxima assim, de forma furtiva, sem ter más intenções.

_Laroyê seu Tranca-Ruas - pensou, com muita fé, chamando pelo seu guardião.

Os meliantes se aproximaram, um deles com um punhal em riste, pronto para atacar, mas no momento em que daria o bote começou a tremer, assim como seu companheiro de crimes. 

_O que é isso? - perguntou um dos marginais, apavorado

O outro sequer respondeu, saiu em disparada, seguido pelo comparsa que deixou cair o punhal no chão e nem sequer se deu ao trabalho de pegá-lo de volta.

Respirando aliviado, o rapaz que seria vítima do assalto perguntou a si mesmo o que teria acontecido.  Foi quando ouviu uma voz atrás de si:

_Chamaste por mim e jamais deixei de atender um amigo.

O rapaz agradeceu em pensamento e seguiu seu caminho.  Ainda pôde ouvir uma gargalhada vinda da encruzilhada, mas não se preocupou em olhar para trás, sua fé lhe bastava.

Laroyê senhor Tranca-Ruas.

Douglas Fersan

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terça-feira, 9 de abril de 2013

Socialização e Religião - por Douglas Fersan


Uma das maiores formas de violência é a castração mental.

Em nome de valores particulares acabamos impondo nossa crença, nossas tradições e até nossos julgamentos às crianças.  Esse fato seria considerado normal, afinal é na família que tem início o processo de socialização, através do qual são transmitidos valores.  A família (bem como a religião) são aparelhos de reprodução ideológica, então seria natural transmitir esses valores à criança.  Seria...  se não fosse um porém: é preciso sempre mostrar que existe um outro caminho, um outro pensamento, um outro prismo, uma outra visão.

Segundo Émile Durkheim, a religião é um fato social, ou seja, é algo exterior ao indivíduo, ele não nasce com religião, mas a adquire ao longo de sua vida, justamente no processo de socialização. No entanto, o que vemos acontecer é uma espécie de ditadura teocrática: os pais não se contentam em impor aos filho a sua religião, mas também toda a gama de preconceitos que ela carrega.  Assim encontramos crianças vivendo o conflito entre o que querem e o que teoricamente "não pode".  Encontramos crianças reproduzindo argumentos autoritários e temerários, baseados em dogmas preconceituosos e terrivelmente enraizados em seus pensamentos.  Encontramos crianças castradas mentalmente, incapazes (ou treinadas para se sentirem incapazes) de olhar o mundo (sim, porque não se trata apenas de observar outras religiões, já que lhes é imposta uma visão de mundo) por outro prisma.

Não se trata aqui de defender a ideia de que as crianças devem ser criadas sem religião, longe disso.  Trata-se de deixar sempre claro que aquela não é a única visão das coisas, que existem outras possibilidade e, já que em todas as religiões se fala em um Criador, deixar claro também que Ele primou pelo livre arbítrio e que, futuramente, essa criança vai poder escolher o seu próprio caminho religioso.  

Obviamente os pais querem que os filho optem pela sua religião.  Talvez obtenham êxito se mostrarem que a sua religião não é uma ditadura, e sim um caminho para o crescimento espiritual, para a caridade e para a construção de uma cultura de paz.

Douglas Fersan

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