Lembro que meu pai-de-santo sempre dizia que cada gira é um aprendizado. Ouvi isso por muitos anos (durante todo o tempo em que frequentei a casa que ele dirigia), até que a vida decidiu que eu tinha a minha trilha a caminhar e segui adiante. Deixei para trás o terreiro e as pessoas que tanto gostava, mas carreguei comigo os ensinamentos que herdei desse importante período da minha vida.
Abri – obviamente não sozinho – a minha própria casa, a qual hoje dirijo com muito orgulho (Lar de Preto Velho) e nunca esqueci a frase ouvida tantas vezes: cada gira é um aprendizado.
E a vida provou isso.
Outro costume que herdei da antiga casa é, todo ano, no dia 13 de maio (ou em uma data próxima, em que coincida os nossos trabalhos) fazer uma feijoada em homenagem aos pretos velhos e oferecer à toda comunidade. Fazemos a feijoada com os nossos recursos, nada pedimos à assistência e com muito prazer servimos a todos que comparecem nesse dia e, diga-se passagem, felizmente a casa costuma ficar cheia. Como dizem os mais antigos, “pouco com Deus é muito”. Primeiro tocamos para os divinos orixás, depois damos passagem aos pretos velhos e aí servimos à toda a assistência. Sempre conseguimos satisfazer a todos e sempre sobra para que cada um leve um pouco para saborear com mais tranquilidade em casa.
Assim fizemos no dia 06 de maio (adiantamos a comemoração pois no dia 13 seria o dia das mães). Iniciamos nossos trabalhos com a Prece de Ogum (nessa casa de guerreiro/vim de longe pra rezar...) e logo que os pretos velhos se manifestaram e começaram a atender a assistência, alguém chamou em nosso portão.
Uma das trabalhadoras da casa atendeu e se deparou com dois policiais, que muito educadamente disseram que estavam ali porque receberam uma denúncia de que nós, “macumbeiros” estávamos perturbando a paz pública. Cabe aqui um detalhe importante: realizamos os nossos trabalhos aos domingos a partir das 10 horas da manhã, mas nesse dia, justamente em virtude dos preparativos, atrasamos em mais de uma hora o início da gira.
Com a mesma educação com que foi tratada pelos policiais, nossa irmã os convidou a entrar e verificar se havia algo errado. Eles explicaram que só poderiam entrar porque estavam sendo convidados, pois não havia um mandato, mas aceitaram o convite. Acredito que para não se comprometer, não aceitaram almoçar a feijoada, mas mostraram-se muito educados e tolerantes.
Os pretos velhos continuaram em terra sem mostrar qualquer inquietude ou contrariedade. Apenas pediram que o “meu” preto velho, Pai João Benedito, subisse para que eu conversasse com os policiais.
Eles se mostraram interessados e curiosos com os nossos trabalhos. Perguntaram se era Umbanda ou Candomblé. Expliquei que era Umbanda (e o que é a Umbanda) e, quando viram as imagens de santos católicos, pediram também explicações sobre o sincretismo.
Perguntei se gostariam de tomar um passe com algum preto velho, eles até aceitaram e saíram com um sorriso satisfeito. Antes de ir embora, elogiaram nosso trabalho, a maneira respeitosa como os recebemos e nos disseram que algum vizinho incomodado reclamou que perturbávamos a paz pública, mas que podíamos ficar sossegados, pois nada mais estávamos fazendo do que exercer a nossa liberdade de culto religioso, garanto pela Carta Magna do país. Tão educadamente quanto entraram, saíram. Belo exemplo de que aquele estigma de polícia truculenta e intolerante está com os dias contados.
Mas qual a lição que essa gira nos deu? – afinal foi assim que comecei esse texto.
Ficou a lição de que a humanidade ainda tem muito que aprender. Não consigo imaginar uma figura mais humilde e pacífica do que um preto velho, sentado em seu banquinho, de cabeça baixa, auxiliando aqueles que o procuram, sem perguntar se são justos os seus pedidos ou não. Como uma figura doce, humilde, sábia e sempre pronta a ajudar pode incomodar tanto alguém, a ponto de chamarem a polícia sob o pretexto de estarem perturbando a paz?
Que paz é essa?
Como diz aquela música, é a paz que eu não quero. É a paz enfadonha e hipócrita dos intolerantes, que obesos de tanta empáfia e sapos que engolem, sentam em cadeiras de palha acreditando se tratar de tronos e se julgam acima do bem e do mal, detentores de uma pseudo-verdade religiosa e maligna, que lhes permite determinar qual culto pode ou não ser praticado. Não são pessoas pobres, são miseráveis de espírito.
Mas nossa casa é regida pelo Pai Xangô. Os bons homens da lei entraram, viram que nada havia de errado e ainda nos orientaram como proceder caso sejamos novamente vítimas de preconceito religioso.
Não deixaremos de realizar nossas giras, até mesmo porque um dia essa pessoa infeliz que se incomodou com os nossos doces pretos velhos poderá precisar de ajuda. E certamente os mesmos pretos velhos discriminados e acusados de perturbar a paz, estarão prontos a ajudar essa pessoa, pois assim é a Umbanda. A Umbanda é do bem.
Adorei as almas.
Douglas Fersan