sábado, 3 de setembro de 2011

O Livro - um conto de terror por Douglas Fersan




Girou a maçaneta lentamente e sentiu um estranho arrepio correr da espinha até a nuca ao ouvir a porta ranger, numa mistura de gemido e súplica, como quem alerta sobre um perigo eminente. Paralisada observou o quarto escuro e teve a impressão de que até mesmo a luz relutava em adentrar o recinto sombrio. Olhou desconfiada para a escuridão, mas não tinha motivos para temer.
“As trevas são apenas a ausência da luz” – pensou consigo, lembrando uma velha frase ouvida em um passado distante, que não conseguia localizar com precisão. Além do mais, que perigo a escuridão poderia oferecer além de um objeto fora de lugar, que levaria a um tropeço ou a qualquer acidente trivial?
Usando tais pensamentos como estimulantes contra o medo que insistia em brotar no peito, entrou no quarto e tateou a parede, procurando o interruptor de luz, que apesar de ter sido acionado várias vezes, não iluminou o ambiente.
_Droga – resmungou – a lâmpada deve ter queimado.
Foi nesse instante que seu coração quase parou. Sem que houvesse qualquer corrente de vento que justificasse o fato, a porta – que a essa altura havia ficado às suas costas – bateu forte, como se tivesse sido empurrada por alguém em acesso de fúria.
Não conseguiu reagir. Ficou paralisada, como se cada membro de seu corpo estivesse engessado. Um frio antártico percorreu cada centímetro de seu corpo, subindo dos pés, passando pelas pernas, coluna, ventre, seios... estava completamente congelada. Conseguia mover apenas as pálpebras, que piscavam incessantemente e as órbitas dos olhos, que giravam de um lado para outro, procurando alguma coisa (que não queria encontrar) em meio à escuridão.
Não era atéia, mas também não era dada a crendices e nem mesmo tinha o hábito de rezar, mas naquele momento se arrependeu disso, pois talvez uma prece a ajudasse a livrar-se daquela situação aterrorizante. Mas que nada... agora era tarde para aprender a rezar. Tentou então buscar pensamentos otimistas, imaginando que aquilo era apenas um mal-estar, algo que em segundos passaria e que não oferecia perigo algum.
Mas no mesmo instante em que tentou apegar-se a esse pensamento, viu que tal ilusão seria inútil. Num canto do quarto – o canto mais escuro e quiçá empoeirado – viu aquelas duas pequenas luzes vermelhas, que moviam-se paralelas.
Por uma fração de segundo não conseguiu pensar. Não conseguia concatenar idéias, não conseguia desviar o olhar daquele par de luzes, não conseguia gritar para expressar seu pânico e pedir socorro. Fixou o olhar naquelas luzes vermelhas e paralelas e concluiu, aterrorizada, que tratava-se de um par de olhos.
Sim, era um par de olhos vermelhos como brasa, que brilhavam em contraste àquela escuridão fúnebre. Mais uma vez quis gritar mas não conseguiu.
De repente sentiu um cheiro de flores, mas não era um cheiro agradável. Era aquele odor de flores já velhas, típicas de um velório ou de um cemitério. Teve vontade de vomitar, mas logo notou que o cheiro das flores não era nada comparado ao odor fétido que empestou o ambiente: o cheiro de carne podre, de carniça já em estado avançado e onipresente em todo o quarto.
Conseguiu soluçar. Ao menos já era uma reação diante de tantos instantes paralisada de medo. Soluçou outra vez... e mais outra e outra. Os soluços ao menos a fizeram se distrair por alguns milésimos de segundo. Foi então que sentiu um vento gelado, como se alguma coisa (ou alguém) tivesse passado ao seu lado, numa velocidade estonteante.
Procurou os olhos vermelhos e não os viu, mas em poucos instantes sentiu o vento passando ao seu lado novamente. Foi quando, aterrorizada, viu os olhos vermelhos parados a cerca de quarenta centímetros de si. Não conseguia distinguir o rosto, apenas os olhos insistiam em flamejar à sua frente. Tamanho era seu pavor que uma lágrima escorreu lentamente sobre sua face.
Foi então que o momento de maior terror se fez presente. Um dedo invisível e gelado como o de um cadáver limpou delicadamente a lágrima que descia sobre seu delicado rosto.
_Pobrezinha – disse uma voz gutural e carregada de ironia – agora chora como uma criança assustada.
Aterrorizada, a mulher tentou articular uma palavra, uma interrogação, mas não conseguiu. Apenas ouviu aquela voz agourenta sussurrar, agora em seu ouvido:
_Pisaste nos mais fracos, humilhaste os desvalidos. Jamais tiveste piedade dos inimigos, a quem julgava impotentes...
A cada palavra, aquela boca invisível parecia baforar um hálito pútrido e gelado em seu rosto. Continuou sem dizer nada, apenas recordando os tantos que havia sobrepujado de cima de seu pedestal de riqueza e orgulho. Realmente sempre julgara que os mais humildes, a quem sentia prazer em ver sofrer, jamais teriam forças para se vingar. Sempre achou que suas maldades ficariam impunes. Como em resposta a esses pensamentos, a voz voltou a falar em seu ouvido, exalando aquela fragrância funerária:
_Mesmo os mais pobres possuem suas armas. O ódio, o rancor, a mágoa e o desejo imortal de vingança são capazes de coisas que até... – houve uma pausa, como se o ser invisível se recusasse a pronunciar o nome - ...que qualquer um duvida.
_O que eu lhe fiz? – perguntou a mulher, finalmente conseguindo sair daquele estado letárgico sem, no entanto, ter forças para correr dali.
Uma gargalhada soturna ecoou pelo quarto.
_Por acaso achas que um ser tão insignificante é capaz de me atingir? – perguntou a voz com ares de desprezo – Realmente não sabes quem sou e nem o que quero.
Buscando forças do fundo da alma, ela perguntou:
_Então por que me persegue, por que essa tortura infernal?
_Fui pago... e muito bem pago para atormentar tua existência. Já ouviste falar em pacto? Alguém que julgavas incapaz de reagir contra tuas maldades me pagou para que te atormente a vida inteira. Teu maior castigo será jamais livrar-te de mim.
Mentalmente a mulher tentou repassar a lista de todos os desafetos que fizera ao longo da vida, imaginando qual deles seria capaz de vender a alma ao demônio somente para vingar-se. Enquanto pensava, sentiu a mão gelada do ser invisível apertar seu pescoço e mirou fundo os olhos vermelhos. Em meio à escuridão quase conseguiu ver o rosto horrendo daquele ser que a atormentava. Seria agora o momento de sua morte e o início de uma existência de tormentos eternos?
Tentou gritar, mas a mão gelada apertava sua garganta...

_Chega! – exclamou Maria Clara fechando o livro.
Até gostava de histórias de horror, mas aquela era fantasiosa demais. Riu sozinha ao imaginar inimigos fazendo pactos com seres imaginários para se vingar de antigos desafetos. Ela mesma, rica e soberba, havia conquistado muitos inimigos ao longo da sua vida, desde empregados nos quais pisara sem piedade até amores do passado. Sua coleção de inimigos não era pequena. Se essas coisas existissem mesmo, talvez ela fosse uma séria candidata a se tornar vítima desse tipo de pacto ou feitiçaria. Não leria mais aquele livro ridículo.
Com o livro na mão, dirigiu-se ao seu quarto para trocar de roupa e dormir.
Girou a maçaneta lentamente e sentiu um estranho arrepio correr a espinha até a nuca ao ouvir a porta ranger, numa mistura de gemido e súplica, como quem alerta sobre um perigo eminente. Paralisada observou o quarto escuro e teve a impressão de que até mesmo a luz elutava em adentrar o recinto sombrio...

Douglas Fersan
Agosto/2011

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