quarta-feira, 2 de março de 2011

Uma gira na mata - por Douglas Fersan



Não seria nada especial se a Umbanda não fosse algo especial, mais do que uma religião apenas, mas uma filosofia de vida, um instrumento de ligação entre o astral evoluído (e evoluindo) e os seres encarnados, que também buscam esse caminho.

Eis que um grupo de amigos que comungam a fé nos Orixás resolveu marcar um dia para juntos louvar suas divindades e mostrar sua dedicação e amor às irradiações cósmicas do Pai Maior. Sem grandes pretensões, sem vaidade, sem egos inflados ou desejos de ver a sua estrela brilhar mais que a do irmão, esse grupo combinou o dia e horário em uma clareira próxima a uma cachoeira, em meio ao reino de Oxóssi.

Cada qual contribuiu à sua maneira. Desde aquele que se lembrou de levar um cafezinho para os amigos, até aqueles que se preocuparam com detalhes ritualísticos, como o carvão e o turíbulo para a defumação, cada qual se mostrou peça fundamental para que aquele dia alcançasse a perfeição.

Alguns chegaram antes do horário combinado e já foram preparando o local, deixando a clareira mais limpa e agradável. Os que chegaram depois juntaram-se à tarefa e rapidamente o lugar estava pronto. O sol brilhava triunfante naquela manhã, despejando o brilho de Oxalá sobre a pele – clara ou negra – de cada irmão que ali estava, de coração aberto para receber e doar energia.

Cada um dos presentes saudou os guardiões exus, pedindo aos compadres e amigos que dessem a proteção necessária aos trabalhos. E eles, os exus, receberam com gratidão as singelas oferendas que vinham no sentido de fortalecê-los em sua tarefa protetora. Toda a clareira foi cercada pela energia densa, porém vital para que a realização dos trabalhos espirituais ocorresse de forma tranqüila. Embora não pudessem ser vistos, os guardiões cercaram a clareira, cientes da sua importante tarefa de impedir que qualquer espírito ou energia indesejada adentrasse aquele local.

Não havia imagens ou congá – ao menos da maneira como estamos habituados a ver. Então, os mais experientes pediram aos demais que fizessem um círculo e falaram um pouco sobre a Lei de Deus e a dádiva de poder louvá-lo no templo que Ele próprio construiu: a natureza. Falaram sobre como cada Orixá, cada emanação divina, se fazia presente naquele local, cobrindo de bênçãos todos os ali presentes e, em seguida, convidaram todos para cantar o ponto de abertura da gira.

Os curimbeiros tocaram o couro sagrado dos atabaques não com as mãos, mas com seus corações, cheios de amor e dedicação para embalar os cânticos que vieram a seguir. Os pontos não eram simples músicas: eram orações cantadas com a mais profunda fé que emanava das almas. As vozes embaladas ao som dos atabaques formavam um som cósmico que ecoava por todo o Universo e eram captadas por todos os ouvidos abertos à espiritualidade.

Em seguida deu-se a defumação. Arruda, alecrim, guiné, benjoim, alfazema e todas as ervas da Jurema purificaram o ambiente, retirando toda negatividade, todos miasmas e energias indesejadas.

Ao cantar para Oxalá, os irmãos puderam sentir o sol brilhar ainda mais forte, aquecendo suas peles como quem diz: “estou aqui a ampará-los e protegê-los”. E um calor agradável penetrou a alma de cada um, acalmando todas as dores e preocupações, como um anestésico milagroso. Cada rosto sorriu e as palmas que acompanhavam o ritmo das curimbas se intensificaram.

Em seguida os irmãos cantaram para Ogun. O mato rasteiro das campinas moveu-se como se um veloz cavalo corresse sobre esses campos, limpando todos os trilhos, livrando os presentes de todas as demandas e abrindo os caminhos de cada um. O orixá guerreiro não deixaria seus filhos sem a proteção de sua espada sagrada.

A cachoeira próxima à clareira despejou suas águas com mais intensidade quando os curimbeiros anunciaram os cânticos a Oxum. Gotículas da água preciosa pousaram sobre os rostos dos irmãos, refrescando-lhes a fronte e formando um arco-íris ao contato com a luz do sol, anunciando também a presença mágica de Oxumaré.
Quando a gira parecia não poder fica ainda mais bonita, algumas mulheres, tomadas pela energia maternal de Iemanjá entoaram seu canto, que acalmaria e faria ninar o mais feroz dos homens. O canto da mãe que não julga, não questiona, apenas embala o filho amado em seu colo confortável.

Apesar do sol que brilhava incansavelmente, ouviu-se um trovão ecoando à distância, um trovão tão alto que fez até as pedras da cachoeira rolarem morro abaixo. Era o brado de Xangô, que acalmou todos aqueles que temiam ser vítimas de alguma injustiça, como tantas vezes acontece no dia-a-dia das pessoas que vivem em uma sociedade tão competitiva. Junto ao trovão veio uma ventania, como um redemoinho, que até apagou algumas velas, mas levou consigo as aflições que abatiam alguns dos presentes. Nenhuma demanda, nenhuma negatividade resistiria à força da Orixá dos ventos e dos raios. Eparrei, Iansã.

Restava apenas o desconforto daqueles que se encontravam com a saúde abalada. Mas o Universo não os deixaria sem amparo e a vibração de Omolu e Obaluaê tratou de cuidar de todos os infortúnios que afligiam a alma e a carne adoentada daqueles que cantavam em seu louvor. Os enfermos que estavam ali sentiram uma disposição que há muito não experimentavam. Ficaram tão extasiados com essa nova sensação que por pouco não perceberam a mão enrugada, porém carinhosa de Nanã de Buruquê a afagar a sua pele.

Depois deram passagem às valorosas entidades. Compartilharam da sabedoria dos pretos-velhos, da jovialidade dos caboclos e da inocência das crianças.
Para encerrar os trabalhos, cantaram em louvor ao Pai Oxóssi, o anfitrião daquela gira, que tão gentilmente havia emprestado sua mata para esse ato de amor à natureza e às divindades. Com seu arco, Oxóssi mirou e acertou cada um com a flecha da esperança, da sabedoria, da solidariedade, do conhecimento, da coragem e da fé.
Terminaram os trabalhos agradecendo a Olorum, Oxalá e todos os orixás. Tiveram o cuidado de limpar o terreno tão gentilmente cedido pelos orixás, abraçaram-se e tomaram o rumo de suas casas para mais uma semana de trabalho e desafios.

Qual o final dessa história?

Cada irmão-de-fé estava fortalecido e feliz por ter cumprido sua nobre tarefa com o Astral, e esse derramava bênçãos e proteção sobre toda a humanidade, pois o ato de amor e de respeito às divindades gera a força necessária para que cada homem e mulher que habita o Universo se beneficie dela.

Que cada um faça sua parte, com respeito e fé. E que todos nós recebamos as bençãos, pois irmãos que somos, compartilhamos as energias que emanamos.

Esse texto é um agradecimento à maravilhosa gira realizada em 27/03/2011.

É também um agradecimento a todos os irmãos-de-fé que estavam presentes, desde os cambonos, médiuns, visitantes e assistência. Cada um doou a sua força e a sua luz para que todas as almas saíssem dali felizes e amparadas pelo Bem Maior.

Saravá a Umbanda.

Douglas Fersan – Março de 2011

Um comentário:

Unknown disse...

Que lindo Douglas!!!!
Texto maravilhoso é de arrepiar a alma....Que nosso Pai Oxalá continue iluminando sempre seus caminhos!!!
Parabéns...
Vanessa