O termo "calunga" é de
origem bantu e tradicionalmente faz referência à morada dos mortos, ou mais
comumente, ao cemitério. Assim, sempre
que nos referimos à calunga, estamos nos referindo ao campo santo, o cemitério,
o local os despojos carnais são depositados.
No entanto, essa palavra assumiu uma outra dimensão.
Ao serem capturados (ou ao ver
seus irmãos sendo feitos cativos) e colocados em navios negreiros, os africanos
passaram a ver o mar como um grande cemitério, já que a viagem rumo à
escravidão representava uma espécie de morte em vida. Era como se o mar levasse embora tudo que
lhes era precioso: os costumes, a crença, a dignidade, o convívio com os entes
queridos e, principalmente, a liberdade.
Dessa forma, o mar passou a ser encarado como uma grande calunga, ou
seja, como um grande cemitério.
Assim surgem dois novos verbetes
no vocabulário do negro – e que viriam integrar o dialeto das religiões com
matiz africana: a calunga grande (o mar) e a calunga pequena (o cemitério
propriamente dito).
Há um aparente paradoxo na
utilização desse termo para se referir ao mar, afinal não é ele um dos reinos
dos orixás? Não seria o mar a origem da
vida? Então como relacioná-lo à morte?
Não esqueçamos que a morte (iku
em yorubá) não representa o fim, e sim uma transformação. Não esqueçamos também que Omolu, o orixá da
cura, mas também da morte (no sentido de transformação, não de fim), e Iemanjá,
a rainha do mar, o princípio e a origem da vida, da maternidade, da
concepção.
O que parece ser um paradoxo é,
na verdade, a explicação para essa questão.
Ao mesmo tempo em que o mar representava a morte aos cativos,
representava também um renascimento no Brasil.
Não que esse renascimento fosse algo agradável, longe de defender a
escravidão, mas era um renascimento no sentido de levar a sua cultura, as suas
crenças, os seus orixás a terras tão distantes.
Era como se a o pai Omolu determinasse o fim em terras africanas e
Iemanjá um recomeço em novas terras, permitindo assim que os povos americanos
tivessem a oportunidade de conhecer as divindades pelo ponto de vista africano,
e não do europeu, tradicionalmente cristão/católico. Concluímos que aqueles negros cativos, bravos
heróis, deram a sua liberdade e a sua vida para nos agraciar com a crença e o
conhecimento sobre os divinos orixás, inkisses e voduns. Graças a eles e à sua heroica resistência
hoje temos a oportunidade de cultuar essas entidades, sem a viseira das
religiões tradicionais da Europa.
Assim sendo, o mar, chamado de
calunga grande, que representou em tempos idos um gigantesco cemitério, é para
nós um reino sagrado, que nos trouxe essa oportunidade. A quem cultua as divindades do panteão
africano não basta reverenciar seus reinos sagrados, é preciso conhecer os seus
fundamentos e história. Ao colocar os
pés na água do mar, não esqueça de saudar os divinos orixás, a vida e aos
nossos ancestrais cativos, a quem devemos tanto.
Douglas Fersan
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