sábado, 18 de outubro de 2014

Uma história sobre Oxum - por Douglas Fersan


Era uma daquelas manhãs em que o sol se esforça para brilhar mas sem conseguir. Um fina névoa e uma leve garoa cobriam a mata. Até Oxóssi preferiu descansar naquele dia preguiçoso. Guardou seu arco e suas flechas e esticou o corpo esguio entre as árvores.

Xangô sentou no alto das pedreiras e olhou ao redor, mas sem conseguir ver muita coisa, já que a neblina tapava-lhe a visão. Também preferiu apenas contemplar aquela manifestação da natureza.

Na cachoeira, a nuvem de poeira d'água misturava-se às gotículas da fina garoa, formando uma só camada de água. Se Oxumarê estivesse ali, certamente aproveitaria aquela cortina para projetar seu arco-íris, mas como os demais, também preferiu apenas observar.

Foi quando ela chegou. Cheia de dores. Não dores físicas, mas na alma; os sentimentos estilhaçados e as esperança quase à míngua. Suas esperanças só não haviam minguado completamente porque ainda confiava em seus orixás.

Não tinha muito a oferecer.  A situação financeira não lhe permitia ao menos comprar uma vela. Mas não eram os problemas financeiros que a preocupavam. A razão de seu sofrimento era ver que diante dos problemas, aqueles que a cercavam, marido, filhos, amigos, pareciam perder a fé e no auge da incompreensão dos infortúnios, permitiam que sentimentos como a ira, o rancor, a cólera lhes dominasse o coração, causando momentos de tensão e total desarmonia em seu lar.

Não estava lá para pedir dinheiro ou riqueza. Queria apenas que a família voltasse à civilidade e a se unir pelos laços de amor que se espera em um lar.

Estava envergonhada, pois estava ali para pedir ajuda aos sagrados orixás e não tinha sequer uma vela para ofertar como agradecimento.Sempre lhe ensinaram que era conveniente ofertar algo como forma de gratidão.  Porém, quando estava bem próxima à cachoeira, encontra uma flor amarela. Daquelas bem sem graça, sem perfume ou qualquer atrativo que valha a pena o esforço de dobrar os joelhos para ser apanhada.  Mas algo a impeliu a colher a flor, e assim fez.

Com a flor na mão, sentou-se à beira do rio, mergulhando os pés na água gelada. Sentiu um frescor lhe subir pelo corpo.  Olhou as água da cachoeira descendo com força, mas o mesmo tempo com harmonia, contornando com sensualidade os obstáculos que as pedreiras lhe impunham. Sentiu então a presença magnânima de Oxum, que como dizem, faz como as águas dos rios: não deixa de correr por causa dos obstáculos, apenas os contorna com mestria e elegância.

Fez uma prece sincera a Oxum, entregando à doce Mãezinha todos os seus problemas, todas as suas dificuldades. Pediu com fé que a família voltasse a viver em harmonia e que ela tivesse esse mesmo talento de Oxum, de contornar os problemas sem deixar de seguir seu rumo.

Perdeu a noção do tempo que ficou ali em prece.  Deixou que sua alma viajasse embalada na cascata que descia as pedreiras. Sentiu que fôra acolhida pelo ventre fecundo, alimentada pelos seios fartos a abrigada no coração imenso da mãe das águas doces.  Sentiu que com fé e perseverança contornaria todos os seus problemas, pois seus orixás jamais a abandonariam, o Pai Celestial nunca a deixaria desamparada e não lhe faltaria forças para carregar sua cruz até atingir o caminho da vitória.

Sentiu uma onda gigantesca de gratidão tomar conta de sua alma. Era como se os ventos de Iansã soprassem para longe tudo aquilo que lhe fazia sofrer. Foi quando algo lhe afligiu: o que ofertar  aos sagrados orixás, em especial a Oxum, que lhe acolhera naquele momento de precisão?  Antes que fosse tomada pela preocupação, desceu os olhos e deparou-se com flor amarela, sem graça em sua mão direita.  Não teve dúvidas: fez uma prece de sincero agradecimento e jogou a flor no rio, oferecendo-a à mãe das águas doces.  Respeitosamente deu as costas à cachoeira e tomou o rumo de casa, certa de que seus problemas chegariam ao fim.

Com um sorriso largo Oxum aceitou a singela mas sincera oferenda (a mãezinha estava mais grata pela prece do que pela for, é verdade) e fez com que as águas descessem da cascata ainda com mais força, renovando as energias que a sua filha precisava. A neblina se desfez, o céu se abriu, permitindo que o sol e calor revigorante de Oxalá se derramasse sobre todos seus filhos, fazendo com que jamais perdessem a fé.  Oxóssi se espreguiçou e levantou de seu sono preguiçoso, decidido a trabalhar para que não faltasse fartura àquela valorosa filha. Do alto das pedreiras Xangô também se levantou, decidido a abrir os caminhos da justiça para que todos os problemas da filha-de-fé fossem superados. E Oxumaré resolveu aparecer em forma de arco-íris, mostrando que a beleza da vida e o poder da transformação, que certamente viria.

Aquela filha que chegara tão ferida voltou para sua casa se sentindo curada das dores da alma. Algo lhe dizia que os orixás estavam trabalhando para ajudá-la e que no devido tempo tudo estaria resolvido. Seus olhos materiais não lhe permitiam ver, mas todos eles já estavam agindo, devolvendo a harmonia e paz que faltavam em seu lar... e em breve, harmonizados, os problemas de ordem material também se resolveriam.

Não foi preciso pagamento algum. Bastou uma prece sincera, a fé inabalável e um gesto de simplicidade para que Mamãe Oxum e os demais orixás se compadecessem daquela filha. Pois engana-se quem acha que eles pedem luxo, bens materiais para socorrer seus filhos. Quem defende essa ideia são os mercadores da fé. Basta acreditar e ser merecedor, fazer uma prece e demonstrar, ainda que de forma singela, como jogar uma flor amarela sem graça ao rio, que a sua fé prevalece sobre os seus problemas.

A melhor oferenda são os seus bons sentimentos.

Douglas Fersan
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