sexta-feira, 24 de abril de 2015
Coração peludo - Douglas Fersan
Um dia você chega a uma casa de Umbanda cheio de problemas.
Vive à base de remédios, frequenta consultórios médicos, especialmente os psiquiátricos, com frequência. Por mais que os médicos tentem e tenham boa vontade, não conseguem diagnosticar a causa dos seus males. Não dorme direito à noite e passa o dia sonolento, reclamando de tudo e todos. Não consegue se concentrar no trabalho.
Em casa nada parece estar em harmonia. Desentendimentos conjugais, falta de paciência e de diálogo... desconfianças descabidas surgem e, por mais absurdas que sejam, assumem proporções gigantescas. Você sabe que os outros são tão inocentes quanto você, mas não consegue perdoá-los e nem estabelecer uma conversa harmônica.
Mesmo os seus desejos mais simples não se realizam. Desde aqueles desejos materiais (qual o problema, quem não os têm?), até aqueles de realização pessoal parecem sonhos distantes, irrealizáveis. Você se desespera, busca soluções nos mais variados lugares e não encontra respostas.
Até que um dia conversa com alguém e através dessa pessoa você chega a uma casa de Umbanda.
Ali é recebido, acolhido e ouvido. Nada lhe é cobrado e você não é submetido a julgamentos. Ninguém lhe aponta o dedo, apenas ajudam a solucionar seus problemas. Os orixás e entidades que ali trabalham mobilizam seus esforços e seu axé e vão em busca da raiz do seu sofrimento. Logo fica claro que seu corpo não padecia de males físicos, sua insônia não era simples estresse, os remédios eram desnecessários e a desarmonia no lar era causada pela presença de energia e seres invisíveis indesejados.
Você é tratado. E mais que isso, descobre que tem a capacidade de ajudar outras pessoas. Recebe o axé da casa. Os frequentadores da casa se tornam seus irmãos-de-fé no sentido mais amplo da palavra. Sofrem com suas dores, comemoram suas alegrias, partilham dos seus problemas e se unem para lhe ajudar a encontrar soluções. Os dirigentes apostam na capacidade de ajudar, no seu bom caráter e na sua humildade e na sua disposição para ouvir e entender os demais, afinal já passou por isso. Apostando na sua pessoa, os dirigentes lhe ensinam o que sabem, compartilham o axé da casa com você, pois acreditam que você será mais um soldado a lutar pelo bem dos necessitados e desvalidos. Você encontrou o alento que procurava, mas como todo mundo, vez ou outra tem um problema, e sempre que isso acontece, procura os dirigentes e os mentores da casa e é sempre escutado e amparado por eles.
E assim passa algum tempo. Você aprende muita coisa, mas esquece de algo muito importante: o aprendizado é eterno e nunca é suficiente. Chega o momento em que você acha que o seu aprendizado já é tão grande ou maior do que o daqueles que lhe ampararam (não só dos dirigentes encarnados, mas dos próprios orixás e entidades). Seus problemas de saúde foram sanados, mas a sua memória enfraqueceu. Você esquece o estado em que chegou no dia em que colocou pela primeira vez os pés nessa casa de Umbanda. Esquece a forma carinhosa com que foi recebido. Esquece os ensinamentos, especialmente os de humildade, que lhe deram. Esquece que o axé pertence aos orixás e não a você.
Então, numa atitude de total ingratidão, passa a apunhalar pelas costas os irmãos que lhe acolheram. Critica, fala mal, aponta o dedo. Cria tumultos, tenta desarmonizar o ambiente que lhe deu alento. Um dia anuncia resolve deixar a casa... problema seu: você era livre quando decidiu entrar, que seja livre para sair e que seja sempre muito feliz. Mas você não fica contente em simplesmente sair. Usa dos mais diversos meio – especialmente dos pouco éticos – para lançar farpas contra aqueles que um dia acolheu.
Felizmente seus problemas parecem estar resolvidos. Tomara que você e os seus continuem bem, certamente aqueles a quem você chamava de irmãos torcem verdadeiramente por isso. Já o seu coração pode estar com problemas. Aquele coração que um dia chegou sofrido, hoje está “peludo”, feio, cheio de piolhos e sujeira... sujeira que você mesmo criou.
O axé que você recebeu é verdadeiro. Verdadeira não foi a sua fé e a sua gratidão e nem o seu respeito. E o seu respeito (ou a falta dele) traduzem o que você e porque sofre tanto. A sua falta de gratidão e de respeito ao axé que recebeu revelam a mediocridade de seu caráter, a falta de preparo que você tem para exercer a mediunidade e o quanto ainda tem que ser ajudado para que possa realmente ajudar alguém.
Aliás, falando nisso, seus antigos irmãos rezam para que você continue sendo ajudado... mesmo sem sofrer, pois não é só quando a água bate no traseiro que precisamos de ajuda. Precisamos dela justamente quando nossa empáfia não nos permite notar que o traseiro está sujo e o coração peludo.
Douglas Fersan
.’.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário